As Transformações nas condições de vida da população negra no Brasil


RELAÇÃO ENTRE CLASSE E COR: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A ASCENSÃO SOCIAL DO NEGRO NO BRASIL

Francisco Fernandes Ladeira


Ascensão social do Negro

 A ascensão social dos negros no Brasil, embora de maneira tímida, é fato. De cada seis negros que se movem na pirâmide social do país, cinco melhoram sua condição de vida. A população negra corresponde a um terço da classe média do país. (PEREIRA, 2005: 66). Um estudo realizado a partir de dados do IBGE por economistas do Ibmec demonstra que entre os chefes de família que ganham mais de R$ 1.384 os negros representam 14,69%. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, entre 1992 e 2001 quase dobrou, entre os que ganham mais de cinco salários mínimos, o número dos chefes de família negros. (BARBI, FERNANDES, 2003).
Embora muito aquém do esperado, vários trabalhos demonstram que negros já ascendem socialmente desde o período colonial.
 Roberta Fragoso Kaufmann identifica uma ordem de 1731, emanada de dom João V, em que era concebido a um negro o importante cargo de procurador-geral da Coroa, “(…) dizendo que ser negro não era impedimento para assumir função pública”. (KAUFMANN, 2008: 7).
No século XVIII, a relativa flexibilidade da sociedade mineradora propiciou aos cativos, sobretudo para aqueles que encontrassem metais preciosos, a possibilidade de conquistar a liberdade através das Cartas de Alforria.
No entanto, pesquisas historiográficas confirmam que na região das minas, como no restante do país, os libertos eram minoria. “Por volta da terceira década do século XVIII, no apogeu da economia mineradora, os escravos alforriados não ultrapassavam 2% da população”. (MAESTRI, 2001:142).
Por outro lado, no polêmico livro “Não somos racistas: uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor”, Ali Kamel aponta uma grande mobilidade social dos negros durante o período escravista. Destaca a região de Campos, onde (segundo recenseamentos da época), na virada para o século XIX, um terço da classe senhorial era de “pessoas de cor”. “(…) Uma vez alforriados, a cor não era impedimento para que os negros fossem aceitos como iguais pelos brancos e pudessem comparecer ao mercado de escravos na condição de compradores (…)”. (KAMEL, 2009: 86).
 Ao estudar a Bahia do Período Colonial, Luiz Viana Filho (1976) salienta que na capitania muitos negros se orgulhavam de ter escravos. Segundo o autor, a singularidade da sociedade portuguesa instalada nos trópicos, “onde não havia ideais absolutos nem preconceitos inflexíveis”, facilitaria a ascensão social do negro.
Em “Sobrados e Mucambos”, publicado em 1936, Gilberto Freyre relaciona a ascensão social do mulato ao processo de modernização do país, registrado após a segunda metade do século XIX. A paulatina transferência dos poderes político, econômico e cultural do campo para a cidade[12] traria como consequência a real possibilidade de mobilidade social para os estratos inferiores. “A urbanização do Império (…) tornou quase impossível o equilíbrio antigo [organização social essencialmente estamental], da época de ascendência quase absoluta dos senhores de escravo sobre todos os elementos da sociedade (…).” (FREYRE, 2000: 601). Surgiram assim, novos estilos de vida, mais próximos da ideologia burguesa do que dos valores rurais e patriarcais. No ambiente citadino, elementos como a ascendência de um indivíduo, perdem importância como fatores de valorização social. Freyre identifica uma “nobreza emergente” nesse novo contexto, formada basicamente por doutores e bacharéis. Além da advocacia; a carreira militar e o casamento inter-étnico[13] foram os principais meios de ascensão social de mulatos e negros (em menor escala) no Brasil da segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do século seguinte.
No ensaio “As elites de cor: um estudo de ascensão social”, publicado na década de 1950, Thales de Azevedo se propõe a estudar a mobilidade social do negro na cidade de Salvador. Apesar de reconhecer o preconceito de cor na capital baiana, “mais brando do que o registrado em outras nações”, Azevedo descreve uma sociedade flexível à ascendência social do negro. Apresenta a aceitabilidade dos negros e mestiços perante a elite soteropolitana, principalmente quando bem educados, “(…) educação no duplo sentido de boas maneiras e de uma instrução de elevado nível (…)”. (AZEVEDO, 1955: 198). “Nas camadas mais altas da sociedade baiana (…) em geral a pessoa de cor não sofre humilhações” (IDEM, p. 67). Como canais de ascensão social utilizados pela população negra são citados a burocracia, as artes, o comércio e os esportes, dentre outras atividades.
Para a corrente “revisionista”, ocorreu justamente o contrário do promulgado por Gilberto Freyre, Luiz Viana Filho e Thales de Azevedo. Ao ascender socialmente, ao entrar na acirrada competição capitalista com os brancos, os negros viram o preconceito, antes camuflado pelas relações patriarcais, tornar-se latente. A competição direta no mercado de trabalho com os brancos e a presença em lugares raramente frequentados pelas pessoas de cor mostrou a população negra a verdadeira face das relações raciais no Brasil [14].
O “preço” pago pelos negros emergentes na pirâmide social foi incorporar ideologias impostas pela elite branca, como a democracia racial. Não obstante, foram obrigados a negar suas origens, principalmente os mulatos mais claros, deveriam “comportar-se como brancos”. Para ingressar no “mundo dos brancos”, negros e mestiços se submeteram a um “branqueamento” psicossocial e moral. (OSÓRIO, 2004). Lembrando expressões citadas pelo próprio Gilberto Freyre, se nos Estados Unidos quem “escapa de branco, negro é”, no Brasil “quem escapa de negro, branco é”. Ou seja, os “quase brancos”, para todos os efeitos, se classificam como caucasianos. “Os negros que ocupavam uma oposição de classe superior identificavam a si mesmos como membros da comunidade branca”. (COSTA, 1999: 379). No seminal trabalho “A integração do negro na sociedade de classes”, Florestan Fernandes registra uma ínfima mobilidade social das pessoas de cor nas décadas posteriores a abolição (restrita, quase exclusivamente, aos negros e mulatos “protegidos” por influentes famílias brancas)[15]. Para Florestan, ao contrário do pensamento de Gilberto Freyre, o desenvolvimento da “sociedade de classes” em detrimento da “sociedade de castas”, não apresentou como apanágio a possibilidade de melhoria econômica para os descendentes de escravos. Em geral, negros e mulatos foram excluídos da “revolução burguesa” brasileira.
Na medida em que a ordem social competitiva e a urbanização estavam em plena emergência (…) os negros e os mulatos ficaram à margem ou se viram excluídos da prosperidade geral (…) porque não tinham condições para entrar nesse jogo e sustentar suas regras. (…) Viveram dentro da cidade, mas não progrediam com ela e através dela. Constituíram uma congérie social (…) e só partilhavam em comum uma existência árdua, obscura e muitas vezes deletéria. (FERNANDES, 1978: 99).
Influenciados pelo “Mestre” Florestan, Fernando Henrique Cardoso e Otávio Ianni, ao realizarem um estudo sobre as relações raciais e a mobilidade social em Florianópolis, apontam que mesmo o advento de uma economia baseada no trabalho assalariado não alterou a posição de inferioridade social dos negros naquela cidade e tampouco acabara com o preconceito de cor. Assinalam a conservação de um “sistema de acomodação inter-racial”, em que os negros continuaram exercendo as mesmas funções para os quais a ideologia racial os consideravam “naturalmente” aptos. Ou seja, atividades manuais, socialmente desprestigiadas, que desempenhavam desde o período escravocrata. “(…) A discriminação que se exercia primeira e naturalmente quanto ao escravo transferia-se para os negros em geral e seus descendentes mestiços”. (CARDOSO, IANNI apud. KAMEL, 2006: 33).
Nas últimas décadas, a maior presença de negros nos meios de comunicação, principalmente em anúncios publicitários, reflete a maior importância econômica dos afro-descendentes. Membros do Movimento Negro creditam essa maior participação à militância do grupo junto ao Ministério Público.
Entretanto é bastante ingênuo aferir essa maior presença negra apenas ao lobby étnico. Certamente não consiste em principal escopo do mercado promover a igualdade racial. Como salientou Adam Smith , os agentes capitalistas não agem movidos por sentimentos altruístas, mas sim pela famélica busca por lucro.
 
Se o negro está cada vez mais presente na mídia, é prova concreta da melhoria de sua situação financeira. O mercado publicitário cada vez mais direciona anúncios para esse consumidor. Atualmente é possível observar modelos negros divulgando produtos que há algum tempo eram consumidos por um pequeno grupo de brancos. (PEREIRA, 2005: 66). “Quem fecha os olhos para o negro vira um fóssil. Hoje não há espaço para piadas ou posturas racistas. O negro tem dinheiro e paga pelo produto que quer”. (GUANAES apud. PEREIRA, 2005:66). Em depoimento para o documentário “A Negação Brasil”, que aborda a maneira estereotipada como o negro é retratado nas telenovelas brasileiras, o ator Milton Gonçalves ressalta que os comerciais não estão simplesmente incluindo o modelo negro, mas sim atraindo um novo segmento para o mercado consumidor.

Disponível em: http://www.consciencia.org/relacao-classe-cor-a-ascensao-social-negro-no-brasil
 


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